Lobo sem Matilha
Reportagem
Os Lobos da Neve foram, em tempos, um dos maiores motoclubes do país, e sem dúvida o maior da nossa região. O território rochoso que marca a Cova da Beira era cortado por milhares de motociclistas, que ao longo dos anos se reuniam e cimentavam o seu prestígio com eventos que conhecemos como “concentrações”, trazendo prestígio e nova vida às ruas da Covilhã.
Por: Diana Franco, Joana Reis, Miguel Mendes, Oana Gabriela
Estas concentrações remontam a uma tradição com mais de uma centena de anos de existência. Foi em 1903 que surgiu o primeiro moto-clube registado, o Alpha Motorcycle Club of Brooklyn, em Nova Iorque, que passou mais tarde a ser a Federation of Americans Motorcyclists. A camaradagem e amizade são os princípios fundadores, promovendo a socialização entre seus participantes.
Este afeto pelos cavalos de duas rodas levaram à criação da American Motorcyclist Association, um lugar-comum para os norte-americanos se reunirem e fazerem os festejos associados a esta tradição.
A partir daqui a tradição foi-se espalhando por todo o mundo, e Portugal não foi exceção. Na nossa região em particular, foi em 1991 que o primeiro moto clube se formou de forma oficial, porque já existia desde 1988, tomando lugar na Serra da Estrela as suas concentrações. Para nos falar da história do moto clube, entrevistámos o membro fundador, Paulo Castanha.
Paulo tem 50 anos e desde novo que vive na nossa região. Concluiu o 9º ano na Escola Secundária Campos Melo. É um homem de diversas paixões e a música e as motas acompanham-no desde novo.
Foi inicialmente por parte do pai que originou o “bichinho” pelas motas. Como todas as paixões que tomam conta dos mais novos, a influência paterna foi o que levou Paulo Castanha a interessar-se pelas motas.
A ideia de formar o moto clube veio de um grupo de amigos com os quais organizava passeios sem fins lucrativos pelo distrito. A concentração dos Lobos da Neve era já precedente à tomada das rédeas por Paulo e os seus colegas. A concentração era mantida por pessoas de fora, nomeadamente do norte do país. O facto de a primeira concentração se ter realizado na Serra da Estrela, deu sentido a que um grupo local tomasse conta do empreendimento.
Na transação do local onde se encontravam, de recantos no alto da serra ao lugar onde hoje está o Data Center, os novos membros tiveram alguns desentendimentos com os antigos dirigentes e por razões legais e receio por parte dos antigos cabecilhas do clube, Paulo registou “Moto Clube da Covilhã: Lobos da Neve” que até hoje está registado pessoalmente pelo membro fundador.
Em 1998, realizou-se a primeira concentração do moto clube registado e já oficial: foram mais de duas mil as inscrições, o que para os líderes do clube foi um bom marco inicial. Na segunda concentração estes números duplicaram, pelo que o moto clube estava, especialmente para uma edição invernal, a fazer sucesso como não se imaginava inicialmente.
O nome “Lobos da Neve” vem de um mito da nossa região. Não foi um nome original por parte dos fundadores que o registaram. Paulo afirma que a mudança principal com a tomada da direção do clube foi a adição de um logótipo, que apresenta o nome do clube, as cores do nosso país e o mítico lobo da neve, um símbolo de liberdade e união entre vários membros da mesma espécie.
(o logótipo registado que representava o motoclube)
Parte da razão para o estatuto de coletividade registada pelos líderes, foi a questão da legalidade. A Federação Nacional de Motociclismo não poderia oferecer apoios a quem não estivesse devidamente federado. Com apoios, Paulo explica que não se trata aqui de apoios financeiros, mas sim logísticos. Uma das necessidades iniciais era promover e aproveitar, através do uso de máquinas construtoras, o espaço que foi concedido ao clube, onde hoje é o Data Center, montando tendas e a ajuda com o transporte e organização do espaço público. Um problema que afetou o motoclube desde o início, a falta de apoios sempre se mostrou uma arduidade difícil de ultrapassar.
Começando com a falta de fé por parte da Câmara Municipal da cidade da Covilhã, a adesão exponencial de interessados no motoclube fez encher a cidade e na segunda edição os bares estavam cheios, os hotéis lotados e a cidade brotava com o aparecimento de pessoas de todos os cantos do país e até mesmo de países estrangeiros.
Vendo esta situação, Castanha esclarece que a Câmara começou a perceber que dar mais apoio aos Lobos seria um bom investimento, pelo que na terceira e sequentes edições do evento, já depois da retirada do nosso entrevistado, não só apoio logístico como monetário foi oferecido por parte da cidade. Nenhuma iniciativa deste género existiu anteriormente, pelo que, por serem pioneiros, o antigo dirigente afirma ter havido maior adesão por parte dos interessados.
No entanto, esta batalha deve-se à reputação dos motoclubes. Sexo, drogas, Rock ‘n’ Roll, e tudo o que concerne a este estilo de vida está fortemente enraizado na imagem do rocker, com o casaco de cabedal a topo de uma mota.
Em todas as coletividades, sejam de motas, bicicletas, ou coros de igreja, existem sempre diferentes mentalidades, e nos Lobos não era diferente. A droga ocasional estava presente, não oferecida pelo clube, mas pelos seus membros, e o álcool era uma presença constante nas concentrações.
Não se podia proibir quem tinha sede ou vontade de fumar, pelo que o clube não se responsabilizou nunca pelos comportamentos de cada um dos seus membros.
A única regra que os líderes da coletividade impuseram foi a obrigatoriedade de ser encartado e com seguro para se tornar sócio e poder participar nos passeios.
Passeios estes que Castanha assegura tratarem-se de lazer e não velocidade. Estas regras e diretrizes tiveram razão de existir, pois em quase duas décadas de existência, Paulo Castanha afirma nunca ter havido problemas de maior devido ao álcool ou abuso de substâncias.
Depois de sair do motoclube, Castanha continuava a dar passeios de mota com os amigos, de maneira não oficial. Um dia tiveram uma situação na qual um dos colegas morreu. Este tinha de ir embora com assuntos pessoais a tratar, e na chegada ao Tortosendo, a ultrapassar um carro numa curva, bateu de frente noutro carro.
Paulo Castanha explica que o acidente que sucedeu nada tem a ver com o clube e frisa que foi apenas um passeio entre amigos que acabou mal. Já no ano anterior à abertura do motoclube, um amigo motard tinha falecido num acidente de mota. Apesar disso eles continuaram a andar de mota, e dentro do clube nunca se deu nenhuma situação deste tipo.
Sendo o motoclube uma coletividade que prestava apoios à comunidade, foram diversas as caridades que realizaram ao longo dos anos. Entre elas, um almoço a nível distrital de angariação de fundos para ajudar a filha do colega falecido, que sofre de trissomia 21 e as possibilidades financeiras da sua família eram muito poucas. Esse almoço contou com o apoio da Câmara Municipal da Covilhã.
É de frisar que vários foram os anos em que os Lobos organizavam eventos de cariz social e solidário.
Paulo Castanha conta que, em conjunto com os seus amigos motards, ajudou bastante a comunidade covilhanense e também dos arredores. Isso ajudou a que os motards passassem a ser vistos de outra forma, não como “os feios, porcos e sujos” como era costume, conta Castanha. Este diz que as pessoas até já tinham ganho gosto em sair à rua para ver os passeios dos lobos.
O clube funcionava através de organizações em grupos para várias funções e havia um membro da direção que ficava responsável por cada um. Uns tratavam da segurança, outros organizavam o staff para as concentrações, outros, diz Castanha, “guardavam as meninas que faziam striptease”, que era uma tradição dos lobos enquanto motards.
Além das concentrações, os Lobos da Neve organizavam de 15 em 15 dias, ou pelo menos uma vez por mês, passeios de mota ou outro tipo de eventos, como no Natal e na Passagem de ano, para os sócios do clube.
O destaque das concentrações invernais, que chegaram a ser as maiores da península ibérica, que os lobos organizavam, ganharam tamanha visibilidade pelo facto de participarem noutras concentrações e darem a conhecer o seu logótipo, explica Castanha.
Os Lobos da Neve gostavam mais de serem chamados de “motociclistas”, ao invés de “motoqueiros” que, segundo Paulo Castanha, adequa-se mais “a quem gosta de andar de motoreta e de mandar uns trambolhões”.
Depois da recente e controversa retirada da sede pela câmara a esta associação de motociclistas, a história das suas sedes é explicada pelo fundador:
Os lobos da neve inicialmente começaram por teu uma pequena sede na aldeia do Canhoso, onde se juntavam para pequenas reuniões. O grupo ganhou força e surgiram novos objetivos e ambições como as conhecidas concentrações motards.
Foi então que surgiu a oportunidade de um novo local para a sede. De uma casinha pequena no Canhoso, a um pavilhão rústico com todas as comodidades e decoração apelativa no Rodrigo. Este espaço foi cedido pelo próprio proprietário.
Os lobos encontraram, assim, um novo lar para poderem ampliar o seu projeto e ganhar mais reconhecimento.
Com a abertura à sexta e sábado à noite, o moto clube ganhava cada vez mais vida com tanta adesão.
Atualmente, Castanha continua a mostrar o gosto por motos e velocidade, e é dono de uma icónica Honda Goldwing Interstate, com 1200 de cilindrada e carburador duplo, que o acompanha nas suas aventuras desde 1986, comprada em segunda mão. Compra esta que surgiu de um encontro que o motociclista descreve como bizarro.
(a Honda Goldwing Interstate do fundador) (Paulo Castanha a topo da sua mota de eleição)
Vida de motard é uma vida de perigo na estrada e os acidentes são regulares. O antigo presidente dos Lobos da Neve afirma já ter tido vários acidentes, mas houve um que o marcou à entrada de Coimbra. Felizmente não passou do susto.
A retirada de Paulo Castanha enquanto dirigente do clube realizou-se após a terceira concentração dos Lobos da Neve, mas não travou a continuação do motoclube. Paulo afirma que o clube sempre teve bom espírito e entreajuda coletiva, mas os interesses em fins monetários e incongruidades relacionadas com este tópico foram o que o afastaram de continuar na direção do mesmo. Continuam a existir concentrações e é a edição invernal que mais gente da nossa zona junta. No entanto, os números que noutros tempos reunia nunca mais foram tão fáceis de alcançar.
Existem agora outras opções na nossa área para os amantes das máquinas de duas rodas.
Quando os Lobos pretenderem passar o testemunho a outros, um grupo de indivíduos situados na Boidobra criou já um novo grupo amador, os "Mountain Reapers", amantes de “Choppers”, que embora esteja agora a começar, conta já com três elementos que fazem os seus passeios pela localidade.
O futuro dos motoclubes está garantido na Covilhã e os amantes de motas irão sempre encontrar maneira de partilharem a sua paixão num contexto coletivo, seja através dos Lobos ou através do “sangue fresco”, que graças a gerações mais novas de adoradores mantém a chama acesa por tudo o que concerne a motociclismo.



